Estou morto
Antes de começar minha narrativa, seria interessante definir claramente do que estaremos falando aqui.
A problemática, porém, é que tais criaturas são tão intangíveis a nós seres de fé tão limitada, tão atravancados por esta muleta que chamamos de dom e damos o nome de razão, que é para nós extremamente difícil acreditar que elas simplesmente existam.
Mas direi a você fiel leitor deste meu pequeno conto: A vida não acaba aqui.
Deixe-me começar dizendo meu nome: Nergal Scapattura. Mas sem formalidades, por favor, chame-me de Splint. Todos chamam.
Muitos diriam que eu sou quem impede os mortos de irem ao mundo dos vivos. Isto não é verdade. De fato eu sou aquele que impede os vivos de adentrarem o mundo dos mortos.
É tão verdade que minha função não é a de barrar almas mortas, que diariamente três ou quatro almas acabam escapando para o mundo dos vivos. É com uma destas almas que começa a primeira das nossas histórias.
Seu nome é Denver, e já faz um tempo que ele está solto no mundo. Sinceramente, sou grato por nós, guardiões dos portões, termos os nossos próprios meios para mantê-los no mesmo lugar. Fica mais fácil recuperá-los.
N. “Splint” S.
Que loucura. Que pesadelo. Deus! Como tenho sorte de estar vivo! Já faz quase meio ano que sonho frequentemente o mesmo sonho: uma luz forte, vindo em minha direção. Isso e depois meu apartamento, minha cama fria.
O inverno passou já faz quase dois meses e estamos já saindo da primavera para entrar no verão, mas este aposento continua sendo extremamente frio. Isto junto com a minha crise de pesadelos têm contribuído enormemente para meu péssimo desempenho no trabalho.
Talvez por isso Mary chore tanto.
É que depois destes meus sonhos meu chefe no jornal onde trabalhava como repórter me demitiu por eu não ter mais a mesma atenção para as manchetes.
A falta de sono que meu pesadelo me proporcionava fazia com que fosse difícil estar no lugar certo na hora certa, e isso é a vida de todo repórter.
Mary é minha esposa, e eu me chamo Denver. Denver Douglas. Eu e Mary temos uma filha, Sarah, de 7 anos, que depois do pai ter perdido o emprego foi morar com a avó materna, a fim de ter alguém que pudesse dar a ela segurança de alimentação e estudo.
Este também foi outro baque para Mary. Foi também um baque em nosso relacionamento.
Todos os dias viraram a mesma rotina. Acordo na minha cama fria, tomo o café que Mary deixa pronto para mim na varanda, onde fumo o primeiro cigarro do dia.
O primeiro de muitos. Mary como sempre está na cama, chorando pela falta da filha. Vejo-a acariciando levemente um porta-retratos com uma foto de nós três na Disneylândia. Era um sonho de Sarah dês de que ela tinha quatro anos.
Tento consolá-la, acariciando seu cabelo loiro e seus ombros pálidos, mas ela não parece querer dar mais ouvidos a mim. Sei que é difícil para nós nos olharmos.
Imagino, porém, que sejam por motivos diferentes. Ela, por causa da raiva recatada por eu ter deixado as coisas tomarem essa proporção. Eu, por causa da culpa de ter deixado as coisas tomarem essa proporção.
Saio de casa a procura de emprego, de terno de linho preto e sapatos bem lustrados. O cabelo castanho escuro bem penteado e uma maleta com os currículos a postos. Na primeira rua, ninguém sequer nota minha presença, então entro numa padaria e compro um maço de cigarros. A segunda, a terceira, a quarta.
Alguns ainda aceitam os currículos, para depois discretamente jogarem eles na lata de lixo. Outros apenas dizem que não estão contratando. Nos casos mais extremos, sou sumariamente enxotado do estabelecimento. Juro que se não fosse por Mary, já teria perdido as esperanças e começado a roubar, traficar ou vender meu corpo.
Ou tudo isso. Mas por ela, preciso fazer as coisas da maneira certa. Não posso dar a ela, a mulher que eu jurei no altar que faria feliz até que a morte nos separasse mais esse desprazer.
Continuo buscando emprego até a noite. Depois de muito andar pelas ruas da cidade, paro em uma ponte e acendo um último cigarro. Meu telefone toca algumas vezes durante o dia, mas nada é como essa ligação. Mary me liga dizendo que eu consegui uma vaga numa revista, para ser coeditor.
Que incrível! Um emprego muito melhor do que eu tinha antes. Mas, pois sempre tem que ter um mas, havia um problema: A inscrição para a vaga fechava em 15 minutos, e era do outro lado da cidade.
Ouço isso e me desespero, corro na direção do ponto de ônibus do outro lado da ponte. Finalmente uma nova oportunidade reunir nossa família. De reacender a chama da paixão entre mim e Mary. Por pouco tempo infelizmente.
Na pressa não olho para os lados e quando vou olhar, já é tarde demais. A forte luz provocada pelos faróis de um carro me pega de sobressalto. Durante um tempo fico parado, olhando para a noite escura e me pergunto: Eu morri?
Vejo tudo escurecendo e meus sentidos cedendo. Vejo a vida se esvaindo e penso que talvez não seja ruim assim. Até que a morte nos separe não é mesmo? Pois agora não tenho mais obrigações para com ninguém. Que o gélido abraço do Ceifador venha retirar de mim a culpa. Mas e Sarah? E Mary? Como elas ficarão? Não! Não posso morrer! Eu quero viver!
…
Com um sobressalto acordo em minha cama gélida. Que loucura. Que pesadelo. Deus! Como tenho sorte de estar vivo!
Fonte: Fatos Desconhecidos
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